quarta-feira, 26 de março de 2014

urbe XV




eu falo contigo sem dicção e concebo recordações 
que suplicam até cair e caem sem deixar de ser silêncio 
com a promessa de bom tempo escrita no horizonte 
eu já vi passar tantas luas sobre estas ruas e ainda 
não sei se na cidade se lê o tempo de forma igual 
e pelos mesmos sinais que a minha avó me ensinou 
a ler na aldeia onde o acaso e o ocaso se fundem 
conheço um tamanho na saudade que lê o escuro 
na ria que me espelha enquanto as árvores gemem 
não sei que tamanho terão os meus disparates 
quando os sorrisos florescem deste lado da rua 




terça-feira, 25 de março de 2014

urbe XIV




gosto de sorrisos francos que lavram alegria
suspiro e acordo os termos do horizonte
enquanto a ria se desleixa e se abandona
numa pura preguiça onde me componho
o sol partiu frio e fria e molhada veio a noite
num espasmo acautelado pelas nuvens
deve cheirar a cidade lavada pela chuva
o meu olfacto está concentrado na esperança
tão carregada de oportunidade e sucessão
não se deve conseguir ver sequer uma fração de céu
mas eu estou parcialmente louco e vejo estrelas
e talvez sejam as estrelas a parte sensata e real




segunda-feira, 24 de março de 2014

urbe XIII




perguntei por ti à brisa que nada sabia
o parque é um cenário alegórico com mitos
com personagens que não sabem de nós
ou quem somos para além da alusão
onde a natureza se esforça para ser natureza
muitas vezes a cidade é um vazio
que se intensifica nos arredores da sorte
uma evolução de solidões explicativas
e um pouco mais simples do que isso
aparências que deflagram sem questionar
com pessoas e lugares e coisas esquecidas
que sorriem



domingo, 23 de março de 2014

urbe XII





a cidade dissidente e carregada de reticências
estava na minha pele repleta de vírgulas gentis
à saída breve acompanhado pelo sol inquiridor
numa estrada de pontos finais e parágrafos
e uma revolução de pontuações interjectivas
à chegada a cidade estava no chão e eu nas nuvens
ainda a cidade com os trilhos a interrogar o dia
o céu abstracto que talvez eu possa entender
e a aparência do amor e as suas sonoridades
num sol diminutivo que se abrigava no futuro
quase cheguei sem quase ter saído de mim
agrafado às afeições e emoções sensoriais




sábado, 22 de março de 2014

urbe XI





depois de quase ter dormido 
com o piar pertinaz das corujas 
palavras rebeldes e incansáveis 
foi assim que quase acordei 
com a melodia da primavera 
o afino e acerto dos sentimentos 
no canto insistente dos pardais 
e as suas danças nos beirais 
vocábulos ansiosos nas gavetas 
poesia desdobrada e libertada 
vagueei sem rumo pela cidade 
quase acordado pela preocupação 
dos empregados de mesa do café 
não perdesse eu as estranhas palavras 
tão difíceis de arrumar e limpar 




sexta-feira, 21 de março de 2014

urbe X




as palavras chegaram lentamente 
sem saber que destino dar à esperança 
ou que sorte cabe às recordações 
que se habituaram a mim e ao gosto 
das extensas caminhadas junto à ria 
e caminhámos juntos com o poema 
que acordou comigo pela madrugada 
quando deitámos as estrelas e a noite 
que apelou ao rumo e pediu a saudade 
onde as histórias se projectam à distância 
mas que se desvendam tão próximas 
que partem novamente como partiram 
que partem novamente sem partir 
com a mesma fragrância de despedida 
com a mesma fragrância de despedida 
estivemos juntos durante todo o dia 
e à noite tínhamos quase revisitado 
um ano incrível como os sentimentos
como sentimentos 



quinta-feira, 20 de março de 2014

urbe IX





o sol-poente adormece as flores 
que se recolhem como quem olha 
para dentro à procura de respostas 
pergunto-me se não será a esperança 
como que uma mentira para nós e para 
o mundo muito doente e à deriva no espaço 
no tempo e na dimensão que não prevê estes 
motins de sentimentos sitiados na cidade 
mal definidos por sinais intermitentes 
que impõem que não fiquemos tristes 
como que uma fantasia que criamos 
para cair constantemente até ao fim 
do sentido que é pensar no destino 
dos afectos como fatalidades palpáveis 
num horizonte que está sempre mais além 
eu retiro o dia da estrada para o abrigar 




quarta-feira, 19 de março de 2014

urbe VIII


café majestic


nada fazia prever o tumulto das palavras
na deriva de pensamentos demorados
que andavam tão cansados da chuva
como do calor do dia que despertou as flores
a história pode ser um lugar ambíguo
por vezes repleta de vizinhos desconhecidos
contidos em duas realidades distintas
e de vertigens de cidade na penumbra
estava mais ou menos sentado ao fundo
do café circunstancial onde escorre o tempo
a pensar no futuro do desgostar e da morte
pergunto-me desde quando mudaram o sentido
das ruas adjacentes onde tudo é breve e expirante
e sobre qual será o destino e o porvir do sofrimento
onde a pele suspira ligeira e demoradamente
o tempo esconde-se arrepiado atrás do espelho




terça-feira, 18 de março de 2014

urbe VII





quando se é o pombo na cidade
quando se possui apenas as penas
sem garantias e sem coberturas
e se emprestam plenamente as asas
de que serve o calor da realidade
quando chegam os desconhecidos
e nos esvaziam com zonas exactas
é o frio do fim da tarde que nos acalenta
clandestinamente a coberto das palavras
na trepidez de sonhos que perdem a vez
é a espera que nos apressa nos jardins
em trilhos da história que se assoma




urbe VI




permanecer atracado no jardim
ensimesmado num sorriso primaveril
enquanto o chão é uma maré viva
numa respiração lenta e coordenada
observar o movimento das opiniões
que descansam durante a noite
e que formam ondas encapeladas
em ruas que se esvaziam
numa linguagem peculiar
e ser o ponto de encontro
das palavras que se precipitam
das palavras que se receptam
num fim de tarde que é um absurdo
as pombas estão indiferentes
as pombas estão diferentes

 [17 de março de 2014]




domingo, 16 de março de 2014

urbe V





a cidade dorme em mim e eu disperso 
o cheiro a lavado das escadas e patamares 
já se esvaeceu e ficaram os sorrisos 
tímidos na orla do abismo enfadado 
ecoa distante o latir de um cão fatigado 
de tragar razões maldições e universos 
e que reúne a noite nas sobras do dia 
e de poemas antigos mas ainda quentes 
onde a fantasia se realiza sem existência 
e a existência é ténue e mera fantasia 
mas com estrelas que cintilam paciência 
apenas a que é possível ver ou adivinhar 
entre os brilhos da cidade em reverso 
há partes de mim nas asas de uma borboleta 
onde sou um ponto de partida e de chegada 
a estação que é mais do que uma referência 
onde brincam os poemas e as alusões verdes 
em nuvens de um céu que tem alamedas 
de paradigmas azuis e sonhos púrpura 
com palavras brancas e insuficientes 
para traduzir o verbo amar resgatado 




sábado, 15 de março de 2014

urbe IV


estação


resgato o verbo amar de uma folha
destacada de outro bloco de empenhos
recordo os trilhos que nunca cruzamos
quando os carris são linhas de palavras
com sentidos que me trazem de volta
fico com medo de ter medo de voar
de cair ao rio sem conseguir nadar
de me esquecer de quem sou
ou do avô que partiu há um ano
das razões que me convenceram
dos sentimentos que não se perderam
tudo resumido em palavras que faltam
num tempo que se esqueceu de florir
é esta a estação onde devo sair




sexta-feira, 14 de março de 2014

urbe III




a hábil substituição do aroma do detergente 
despida ou não a brisa nocturna partiu afável 
adivinhei o esperado gentil desejo de bom dia 
entre o reflexo de um casal de felizes rezingões 
gosto de pensar que é genuíno e sentido 
na cidade também há esperança e generosidade 
eu retribuo de imediato aos dois e alegre 
com todos os sentidos e muito sinceramente 
as escadas e os patamares foram lavados com sorrisos 
correm nos jardins alegres e coerentes notas soltas 
ouço-as nitidamente entre os sons da manhã 
oriundas de pautas caídas das estatísticas 
que tranquilizam o deambular insistente 
dos raios de luz que rompem a neblina 
numa investida de múltiplas colorações 
que conquistam muitos dos cinzentos 
mesmo os das palavras hermafroditas 
e a consideração de um rio internacional 
pena é que tenham pisado a felicidade 
há uma ambulância que corre para a urgência 
que por agora ainda não é a minha 
que corre noutro sentido distraído da vida  




quinta-feira, 13 de março de 2014

urbe II




coloco o telemóvel quente no bolso 
a razão é um espaço ténue e frágil 
uma distância quebradiça e nublada 
ainda mais quando se detém o abismo 
dentro e acessível a partir da equidade 
o que o torna ainda mais profundo 
onde não caem as coisas cansadas 
que cavalgam em escolhas gastas 
um autocarro pára e abre-se a porta 
para que eu possa viajar no ar mortiço 
predicado de uma oração sem vontade 
onde a massa lenta e alienada da manhã 
foi substituída por novas máscaras lassas 
e pela esfera amorfa de novas palavras 
de mãos vertiginosas e contundentes 
brindo a todos com um rasgado sorriso 
conheço o caminho das canções do motor 
e estas ruas que vincam o peito da cidade 
que cavalga um trecho de presente audaz 
onde eu sou o louco que respira o avanço 
da noite que não tarda ao som das baladas 
com a textura de uma lágrima dissimulada 
pela brisa que se despe da ansiedade cortês 




quarta-feira, 12 de março de 2014

urbe




peço um táxi para nos transportar
corre uma urgência na cidade
que eu não vejo em mim
as juras que me cobrem
penteiam-se sob a luz dos candeeiros
agarradas às doutrinas sem termo certo
para idealizar sem tempo
enquanto o automóvel avança
por ruas que desconheço
onde procuro identificar o poente
no ângulo restrito e em movimento
na luz uniforme do céu limpo
de estrelas inacessíveis
as palavras não sabem
que transportam palavras em si
chegámos ou chegaremos à razão




terça-feira, 11 de março de 2014

sinal de partida




gosto das palavras que me servem de manto
eu que já fui o vento e o encanto
e que das palavras que me vem soprar também gosto
assim como das palavras onde me encosto
eu que já fui o rio e a margem
já fui a ponte o viajante e a viagem
hoje sou o odor que se segura
na área salobra das águas
hoje sou a dor que se mistura
na área incolor das fráguas
eu que já fui e que voltar a ser poderei
já não vivo entre as margens
mas ainda me alimento de aragens
eu que já fui e não voltei




segunda-feira, 10 de março de 2014

apagar reinventar e prosseguir




voltarei abismado noutro abismo
num ciclo elíptico e reminiscente
com imagens baças como uma visão esgotada
noutros espelhos com os mesmos cenários
de palavras como fragmentos de cansaço
que se amalgamam numa reverência
torpe e decadente
sem ponto de fuga
com um fim marcado e marcante
cansado de dizer adeus
no eterno momento de mudar de rumo
apagar reinventar e prosseguir




domingo, 9 de março de 2014

lá fora existe o mundo




eu sei, as pessoas usam;
eu sei, as pessoas mudam,
mesmo que as ruas o desmintam.
hoje foi possível. devolvo a lua,
do olhar até ao céu,
onde as estrelas começam a florir
numa frágil distância.
há viagens e momentos
que fazemos e vivemos
sozinhos, ainda e por mais
que estejamos acompanhados.




sábado, 8 de março de 2014

talvez em parte incerta





o céu azul e dourado
o meu olhar arrepiado
cruzar o rio e ser a ponte
que se ergue para servir
permanentemente aquém
constantemente além
ligar as cidades à margem
e unir as margens incertas
mais do que o espelho de água
que a morte inveja na geometria
mas eu já estava prometido à rua
tomado pela resina da lua
e as gaivotas a voar lá em cima na fé
com o sol a descer em espasmos
pelos degraus da emoção
onde a saudade é uma cratera
e eu sou apenas a espera




sexta-feira, 7 de março de 2014

na alma




a urbe satisfeita com um sorriso da lua
num fundo negro e finito com uma vénia
que deixa um brilho no céu e as estrelas
que cintilam num impulso quase imortal
assim como o frio noturno que me afaga
a pele deserta inocentada pelo calor diurno
poesia que verte amor no universo raso




quinta-feira, 6 de março de 2014

dentro de mim como um trilho





ficar a ler a flor e ver as imagens nas palavras
e as palavras e as flores são uma grande família
com saltos e contrariedades que amam e gritam
nada disto me assusta verdadeiramente
o escândalo que acende a causa de uma estrela
porque sinto que escrevo no hiato do destino
coisa que eu não tenho, por isso, traço-o




quarta-feira, 5 de março de 2014

nos locais mais importantes do dia de regresso






sou invadido pelas imagens e pelas palavras
regresso que faz de mim forasteiro nos desejos
enquanto as margens despertam nas névoas
e nos cheiros que se ocupam do meu corpo
fatigado e mudo de cidade que se apoderou
com astúcia dos gestos que reflectem o azul
da noite que se silencia durante as badaladas
onze aflitivas pancadas que troam na saudade




terça-feira, 4 de março de 2014

na soma de uma folia




saí da rua lavada dos tormentos pelos chuviscos
esgotado pelo convívio com os monstros mascarados
entrincheirei-me nas folhas húmidas de um jornal
entre os cabeçalhos perdidos e efémeros

num nó que se avoluma na garganta emudecida
para me barricar mais tarde nas folhas lassas de um livro
sem conseguir pousar a cabeça nos lugares ou termos
tão preenchido por nuvens e pela vastidão do mar

as palavras e as promessas recusaram o almoço e o jantar  
sentem o cheiro frio e desumano dos arlequins postiços
que se apresentam polidos e preenchem os dias nos noticiários

eu não fumo e é o semáforo que me silencia e detém
e as pessoas mortificadas com quem me cruzo
reflexos que dançam e regressam vivos e experienciados




segunda-feira, 3 de março de 2014

numa plantação de distância




eu não vi a rua por onde passo tantas vezes
a ria deserta aguarda por mim nos canais em extinção
desprovidos das marés por uma parábola de neblina
eu não espero a ria que não pode vir
assim como o ocaso que perdi num eclipse de oportunidade
as palavras desarrumadas brincam com as imagens dispersas
numa melancolia compassada que se escreve
e fazem vénias à saudade que alimenta a esperança da luz
a rua por onde passo tantas vezes não me viu




domingo, 2 de março de 2014

do sujeito incomum




para lá da janela morna da choupana
que me habita desde a alvorada
onde escorre uma chuva de sonhos
e lágrimas plásticas e imprecisas

é a estrada de horizontes que me embala
nos solavancos da direcção das normas
para ainda mais longe daqueles que dormem
para o núcleo da parte sensível do insensível

onde não se contam ou somam as ilusões
é a noite que me toma e desperta os papéis
que sustêm e aquietam tenazmente as falas

releio os gestos, o olhar, a audição e as memórias
dos exclusivos personagens despidos e esculpidos
numa profusa respiração profunda e insatisfeita




sábado, 1 de março de 2014

em quadros escuros e velozes




fico imóvel, depois de um dia inóspito e inevitável.
concluo, enquanto crepitam poemas nas gavetas,
apinhados de palavras que se isentam e corrupiam
em papéis mirrados e independentes da cidade,
que eu também sou o fim deste tempo e deste dia
quebrantado e apinhado de chuva vazia e inabitável,
ainda que o mar tenha vagas menores do que as minhas:
as minhas descomplicadas vagas de dispensável espera.